Cultura

Dino D’Santiago fala sobre racismo, espiritualidade e projetos com brasileiros

O músico português de origem cabo-verdiana lança dois discos com nomes do Brasil e estreia como escritor com Cicatrizes, livro sobre traumas e superação

"Ter me conectado com o Brasil me fez entender tudo e eu vi que não estou sozinho nessa dança da vida”. Crédito: Telmo Pereira

Ele é um dos grandes nomes da música em língua portuguesa e, também, defensor de causas sociais e políticas. Trata-se do português de origem cabo-verdiana Dino D’Santiago, nome artístico de Claudino de Jesus Borges Pereira, 42 anos, pai de Cleo, 2 anos, e Lucas, 4.

Unindo os universos do soul e hip-hop, ele recebeu distinções como Melhor Álbum e Crítica na primeira edição dos Prêmios Play e, depois, Melhor Canção e Melhor Artista Masculino. Nos Cabo Verde Music Awards, venceu na categoria de melhor ritmo internacional.

Nessa entrevista à EntreRios, Dino fala de preconceito, superação de traumas — tema do livro Cicatrizes, que lançou em outubro — e sobre os dois novos discos que chegarão ao público este ano. Um deles tem participação de vários artistas brasileiros, como Emicida, Luedji Luna e BaianaSystem. O outro será com os também brasileiros Criolo e Amaro Freitas.

O artista lança, ainda esse ano, dois novos discos e um livro. Crédito: Telmo Pereira

Há novidades musicais?

Sim. Gravei um álbum com os artistas brasileiros Criolo e Amaro Freitas e que está em fase de edição. Um disco incrível em que juntamos três forças: o Amaro traz os sons da Amazônia; o Criolo, o lado urbano de São Paulo; e eu levo os meus lados africano e europeu.

Gravei um outro disco no Brasil com outras participações de Emicida, Baianasystem, Luedji Luna, Jota Pê e Melly. É o meu agradecimento ao país. Tudo sairá esse ano ainda.

Quais são suas fontes artísticas?

Eu tenho um trio de artistas que regem o que sou: Bob Marley, Cesária Évora e D’Angelo. E tenho outros artistas que fizeram com que eu quisesse acreditar que era possível: Criolo e Mayra Andrade.

Também na literatura há novidade: sua estreia com Cicatrizes, não é?

Este livro é resultado de mais de 80 madrugadas em que eu escrevi, pintei e compus canções. É uma viagem de volta à minha infância, o meu processo terapêutico. Os vários traumas que tive e que mostram meu processo de construção de um caminho por cima do que já cicatrizou.

Aquelas feridas que ficaram intrínsecas no meu DNA, mas que, ao mesmo tempo, constituem uma história de superação. Foi lançado em outubro pela editora Penguin.

Qual é a sua relação com o Brasil?

O Brasil foi e tem sido um renascimento para mim. Como um negro que nasceu, cresceu e viveu na Europa, onde na maior parte do tempo a vergonha da cor da pele era muito presente, ter me conectado com o Brasil me fez entender tudo. Principalmente na cidade de Salvador, da Bahia.

Vi que não estou sozinho nesta dança da vida. Somos muitos, milhões, muitos mais do que muitas vezes pensamos, pois é fácil se sentir um lobo solitário quando vive-se na Europa, onde o negro ainda ocupa um lugar invisível na sociedade.

Eu tenho a sorte de ser músico, de me expressar através das artes, e isso abre um portal. Então, o Brasil resgatou-me nesse sentido. E depois de muito processo psicoterapêutico e espiritual é que consegui entender o meu lugar único no mundo. O meu direito de só ser.

Como e quando aconteceu esse renascimento?

Aconteceu em um jantar no qual estavam o Kalaf Epalanga (escritor e músico nascido em Angola), a Djamila Ribeiro (filósofa e escritora brasileira), o (músico) Emicida e o Hélio Menezes (antropólogo e internacionalista). Eles disseram que eu tinha que ir à Bahia. Eu estava no Brasil para gravar com a Luedji Luna e com o Emicida.

Eles me incentivaram a passar o dia de Iemanjá (2 de fevereiro) na Bahia, a ir em um terreiro de religiões afro-brasileiras. Foi um renascimento real e aconteceu em 2023. Então, já são três anos seguidos indo para o Brasil, e sei que vai ser assim até o final dos meus dias, enquanto a saúde permitir.

O que deu o start para a necessidade de renascer?

Foi em um período difícil por eu ter criticado o hino português – quando fui eleito como uma das 50 personalidades mais influentes do último meio século para definir o futuro do país -, hino que considero datado e colonial.

A reação das pessoas na internet era do tipo “Vai escrever o hino da Guiné, o de Angola, de Cabo Verde, no nosso não tocas”. Ou seja, a cor da pele é que não me permitiria ser considerado deste território onde nasci, cresci, sonho e canto em português. E que poderia criticar, como é direito de qualquer pessoa.

Como lidar com as críticas?

Psicoterapia. Eu aconselho a toda a gente que possa passar por esse processo, principalmente nós, negros, que tantas vezes fomos silenciados e não nos habituamos a partilhar a nossa emoção. A nossa emoção foi silenciada no nosso corpo.

Dino D´Santiago, Margareth Menezes e Criolo. Crédito: Divulgação.

Como educa seus filhos?

Eu cresci sem ouvir um “eu te amo” do meu pai, da minha mãe. Só depois, já adulto, levei-os para a minha sessão terapêutica, pensando em encontrar ali espaços em que eles me ajudassem a descodificar o passado. E foi importante ouvir o pedido de perdão deles por não terem conseguido ser pais mais afetuosos, porque muitas vezes também estavam sendo agredidos nos empregos.

E quem pagava a fatura éramos nós, que crescíamos naquele ambiente em que o castigo é a educação. Onde batem para te educar. Hoje é impensável para mim levantar a mão para “educar” um dos meus filhos, mas tenho que reconhecer que meus avós fizeram isso com os meus pais.

Você é romântico?

Sou, muito. Até podia dizer que sou romântico demais. Cheguei a estar apaixonado durante quatro anos sem nunca ter falado para a pessoa em questão.

Uma pessoa que não se permite sentir, que se sente rejeitada, não arrisca. Tem medo da rejeição repetitiva. A vida, para mim, é um romance, mas o choque de realidade às vezes incomoda e desequilibra.

Desequilibra as relações amorosas?

Eu vivi as minhas relações conjugais de uma forma sempre muito intensa. Mas ao mesmo tempo sei que não fui, não consegui ser a melhor pessoa para as minhas parceiras. Na terapia, tento me reconstruir. Porque sei que sou um privilegiado, “apesar” de negro.

Em momentos conjugais, traí a confiança que depositaram em mim. Então, não romantizo esse lugar. É constante o meu sentido de perdão mental. Hoje, estou em uma relação com a mãe da minha filha. Não posso dizer que nunca mais vou errar, mas estou nesse compromisso comigo próprio. É um treino diário.

E a saúde física?

Cuido muito de mim. Faço ioga, tenho personal trainer. Os cuidados físicos são muito recentes, mas a psicoterapia já vem desde 2021, e é um caminho longo. Eu tenho consciência de que é preciso cuidar da saúde física, mental e espiritual.

Como é a relação com a espiritualidade?

Faço apometria, prática terapêutica dentro do espiritismo, vou a retiros espirituais e sou muito sincrético nesse sentido. Frequento o candomblé, gosto do espiritismo, segundo Allan Kardec, do budismo. São várias matrizes que me compõem. Sigo todas e estou mais fiel ao candomblé. Pratico todas elas nos meus textos, nas minhas orações, nas minhas terapias. Então procuro ser o meu próprio templo e criar a minha própria dinâmica de conversa com Deus.

Como se conectou em um terreiro?

O primeiro dia em que entrei no terreiro foi o mais transformador da minha vida. Lá, consegui desmistificar tudo. O que era a visão ocidental sobre o futuro e sobre as nossas práticas religiosas.

Vi que os orixás podem sentir todas as emoções que nós sentimos. Isso mexeu muito comigo. A questão da dança, da cor, da matriz – o Yorubá. A questão dos búzios e o contato com a natureza. Aquilo foi tão avassalador e tão direto e espontâneo, que mudou a minha vida.

Você é membro da Comissão para a Igualdade e Luta Contra a Discriminação Racial. O que pretende neste lugar?

Não quero que nenhuma criança viva o que eu vivi na minha infância e percebi na dos meus amigos, que é a invisibilidade social, similar a viver de favor no território que é nosso. Nossos corpos também são pátria.

Nós somos deste lugar e temos que estar sentados à mesa de decisões por um futuro melhor. Agora as redes digitais vieram ampliar a ignorância e o ódio. Uma pessoa que tem a crueldade dentro dela repassa isso. Tenho uma canção que diz “Eu vendo o medo pra comprar coragem”. Só a coragem vai nos tirar desse lugar.

Mesmo num momento de crescente ascendência da extrema direita?

Eu não temo essa ascensão. Vamos às ruas sem medo para falar do legado que conseguimos construir. E nos apropriarmos da nossa cultura.

Dino D´Santiago na posse como membro da Comissão para a Igualdade e Luta Contra a Discriminação Racial. Crédito: Daryan Dornelles.

Essa entrevista foi publicada originalmente na revista EntreRios.

Você pode assinar e receber a publicação no conforto da sua casa, além de ler na íntegra online.

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